domingo, 16 de fevereiro de 2020

Os quase esqucidos: Oscar 2020

            A premiação do 92º Oscar, que ocorreu na noite do dia 09 de fevereiro de 2020, pode ter tido vários problemas. Um dos principais é a queda da audiência, que está no pé da Academia ano após ano, e mesmo tentando encurtar a premiação com a exclusão de um apresentador principal, e antecipando o horário da mesma, a grande noite do cinema segue em baixa com o público. Mas pela primeira vez em muitos anos há uma (quase) unanimidade quanto ao vencedor principal da noite, Parasita, de Bong Joon-ho, que conquistou corações ao redor do mundo e quebrou um tabu histórico na indústria cinematográfica ao vencer os principais prêmios da noite sendo um filme sul-coreano, não falado em inglês.
            Além de Parasita, o público abraçou outros filmes que cativaram muita gente, como Jojo Rabbit e sua crítica ao nazismo aos olhos de uma criança, 1917 e seus longos planos sequências, Little Women e sua modernidade ao adaptar um clássico da literatura norte-americana, Marriage Story e seu drama sobre divórcio, Once Upon A Time In Hollywood e sua tarantinesca homenagem ao cinema, e o aclamado Joker e sua narrativa madura ao contar a história de origem um vilão. Porém, além dessas fantásticas obras, há outros indicados que não receberam a devida atenção e acabaram ficando num canto esquecido desta noite de domingo. São filmes que foram indicados em alguma categoria, que possuem certa qualidade, mas que ao terminar o “boom” do Oscar temo que não irão chegar aos olhos de muita gente, e penso que deveriam. Alguns tiveram certo destaque durante todo o ano passado e começo deste ano, mas por conta alguns preconceitos cinematográficos e outras questões, algumas pessoas os ignoraram.

            Começando por uma categoria que pouquíssimas pessoas se dispõem a acompanhar: Melhor Documentário em Longa-metragem. Finalmente o Brasil voltou a Oscar com o documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, mas o vencedor da noite acabou sendo American Factory, de Steven Bognar e Julia Reichert, distribuído pela Netflix e realizado pela produtora de Barack e Michelle Obama. Mas um filme-documentário muito curioso que concorria também é Honeyland, dirigido por Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov, que conta história de uma apicultora da Macedônia do Norte, que vive numa região afastada do centro urbano e cuida da sua mãe doente. A vida dela começa a mudar significativamente quando uma família passa a morar próximo a ela. O trabalho da dupla de diretores concorria também como Melhor Filme Internacional, e é muito significativo para uma produção pequena e de um país quase desconhecido. É um trabalho singelo e sincero, sem narração alguma ou apresentações desnecessárias: apenas mostra a vida daquela simples mulher num determinado período de tempo, convivendo com o meio ambiente ao seu redor e com as novas pessoas que chegam.
            Outro que merece destaque nessa categoria e For Sama, de  Waad Al-Kateab e Edward Watts. O documentário narra um pouco da vida de uma mulher durante a Guerra Civil Síria: mostra seus amigos, bombardeios, o trabalho em hospitais, o desespero das pessoas e a tristeza que nasce da perda. A diretora, que é a personagem que nos narra a história, conta tudo isso pensando em sua filha, Sama, e faz tudo por ela. Tudo para ela poder viver num lugar melhor, um lugar livre e pacífico. Al-Kateab não nos poupa dos detalhes ao mostrar os feridos da guerra, o parto de uma mulher e o milagre da vida. Nos mostra que nem só de tragédia vivem as pessoas que lá estão, mas que ainda assim é pior do que pensamos. É real e cruel, e mesmo sendo um documentário às vezes nos perguntamos se aquilo é ficção ou não.
            Uma categoria bem concorrida e bastante popular é a de Melhor Filme de Animação, que sempre traz grandes estúdios como Disney e DreamWorks entre os indicados. Este ano não foi diferente e Toy Story 4 saiu vencedor em cima do seu rival de estúdio, How To Train Your Dragon: The Hidden World, e os premiados Klaus e Missing Link. Porém, é curioso que o francês J'ai Perdu Mon Corps (Perdi Meu Corpo), de Jérémy Clapin, tenha garantido uma vaga entre os gigantes. O filme, distribuído pela Netflix, narra a história de uma mão decepada buscando seu corpo, enquanto mostra a história de um garoto, mesclando passado e presente. A animação é realizada com traços tradicionais buscando o realismo, mas nunca tentando deixar de ser um desenho, e nisso já mostra a sua simplicidade. A história tem seus momentos de humor, mas o drama e um possível romance englobam a narrativa em boa parte do tempo. Nós acompanhamos a vida do personagem principal em períodos da sua infância, um garoto muito interessado em aprender e com uma família atenciosa, e enquanto ele é um jovem adulto, quando as incertezas e solidão tomam conta dele. É interessante em como o diretor transita entre a história dramática e romântica do garoto e a história, também dramática mas com tons de suspense da mão decepada, que anda pelas ruas sem poder ser vista.
            Um diretor jovem que está cada vez mais em alta em Hollywood é Robert Eggers, que nos presenteou ano passado com The Lighthouse, indicado a Melhor Fotografia. Nesta categoria, Roger Deakins acabou vencendo por 1917, muito por conta dos seus imensos planos sequências e toda a maquete que teve que ser feita antes das filmagens. O trabalho de Deakins é fenomenal e parte importantíssima do filme, assim como o trabalho de Jarin Blaschke em The Lighthouse. Esse é o segundo trabalho da dupla Eggers-Blaschke, que iniciaram a parceria em 2015 com The Witch. Toda a fotografia em preto e branco é uma personagem do filme, que conta a história de dois faroleiros, um jovem e um mais velho, que vão trabalhar em uma ilha pequena e isolada. Além da fotografia, que realiza bem a demonstração de loucura, isolamento e medo, as atuações de Willem Dafoe e Robert Pattinson merecem destaque. Enquanto Dafoe já está consolidado há anos na indústria, e ano após ano vem nos surpreendendo com ótimas atuações (At Eternity's Gate, 2018 e The Florida Project, 2017), Pattinson se reinventou após explodir ao mundo com a saga Twilight (2008-2012), atuando em filmes como The Lost City Of Z (James Gray, 2016), Good Time (Safdie Brothers, 2017) e High Life (Claire Denis, 2018).
            Em 2016 o diretor James Gray trabalhou com Pattinson, e este ano ele aparece no Oscar com apenas uma indicação para seu filme, Ad Astra: Melhor Mixagem de Som. É triste que um filme como esse tenha apenas uma indicação em uma categoria técnica. Claro que essa edição do Oscar estava muito concorrida, com excelentes filmes indicados e outros ótimos correndo por fora. Porém, este é um filme que caberia muito bem em Melhor Filme, visto que ficou sobrando uma vaga que não foi preenchida por ninguém, e sendo um filme com temática espacial e tendo Brad Pitt como protagonista, o filme seria uma ótima escolha para estar lá.
            Ad Astra é um filme sobre um astronauta que embarca numa missão espacial para ir atrás de seu pai, que também é astronauta. A temática espacial estava em alta anos atrás na Academia, com filmes como The Martian (Ridley Scott, 2015), Interstellar (Cristopher Nolan, 2014), Gravity (Alfonso Cuarón, 2013) e até Arrival (Denis Villeneuve, 2016), que conversa com o tema, garantiram várias indicações ao Oscar, mas atualmente ela parece não se interessar como outrora se interessou. Nesse novo trabalho de Gray, o diretor mostra maturidade ao trabalhar um tema de uma maneira muito pessoal e intimista, algo similar ao trabalho de Cuarón em 2013, mas com particularidades bem distintas.
            Um diretor que está sendo reconhecido agora pelo grande público é Rian Johnson, que dirigiu Star Wars: The Last Jedi em 2017. Antes disso, Johnson já havia trabalho como diretor na série Breaking Bad (2008-2013) em episódios bem distintos: o aclamado Ozymandias (S05, EP 14); e o polêmico Fly (S03, EP 10). Seu trabalho em Star Wars também foi polêmico, uns odiaram, outros amaram, mas ele deixou sua marca e mostrou para Hollywood que tinha assinatura. Em 2019, com Knives Out, Johnson mostrou ainda mais que tinha muita história para contar dentro da indústria cinematográfica.
            Neste filme, o diretor narra uma história clássica de detetive: houve um assassinato numa mansão e dezenas de pessoas passam a ser culpadas, e para resolver o crime é chamado um peculiar detetive. Muito inspirado nas obras de Agatha Christie, Johnson consegue fazer uma história cheia de reviravoltas e com críticas sociais, e muito por conta disso o filme acabou sendo indicado na categoria de Melhor Roteiro Original, perdendo para Parasita. Apesar da história parecer clássica, os rumos que o roteiro toma não são tão clássicos assim. É um delicioso exercício descobrir quem é o culpado.
            Em contraponto com essa juventude de cineastas (Eggers, 36 anos; Gray, 51 anos; Johnson, 46 anos), um velho conhecido ressurge com uma obra de destaque. Clint Eastwood (89 anos) mostra ao mundo que mesmo sendo um conservador republicano consegue fazer bons filmes que incitam vários debates. Richard Jewell conta o caso real de um segurança que descobre uma bomba durante um evento nos Jogos Olímpicos de 1996 em Atlanta. O homem, Richard Jewell, salvou muita gente por conta disso, mas por muita pressão popular e irresponsabilidade da imprensa na época, foi cogitado como um dos culpados do atentado. Ou seja, o homem que descobriu a bomba foi acusado de ter colocado o objeto explosivo. É uma história curiosíssima que mostra a influência que a mídia tem sobre casos de grande destaque. Algo parecido ocorreu no Brasil alguns anos antes desse caso, em 1992: o Caso Evandro. Foi quando uma criança despareceu e dias depois acharam o corpo de uma criança, então a população na época começou a apontar possíveis culpados, e a mídia comprando essa ideia influenciou muito no caso que é magistralmente narrado por Ivan Mizanzuk no podcast Projeto Humanos.
            Histórias trágicas em que a grande mídia tem muita influência é muito comum, e Eastwood nos mostra a fragilidade que houve neste caso quanto a isso. O diretor consegue nos colocar como alguém que estivesse vivendo aquela época em tempo real: ora acreditávamos que era culpado, ora inocente. A história e a persona de Richard nos dão motivos para crer em sua culpabilidade, porém não há prova alguma disso. Clint, após anos, realiza um filme digno de toda a sua obra, mas que infelizmente só concorreu ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, com Kathy Bates interpretando a mãe de Richard.
            Nas categorias de atuação o Oscar indicou a única mulher negra para a sua premiação do ano: Cinthya Erivo, interpretando Harriet Tubman em Harriet, de Kasi Lemmons, foi indicada para Melhor Atriz. Erivo faz uma personagem interessantíssima da história norte-americana, mas infelizmente o filme não colabora para ser tão grandioso quanto a história que quer contar. Harriet foi uma mulher, escrava, do sul dos Estados Unidos durante a Guerra Civil Americana, que fugiu para o norte, mas depois voltou várias vezes para ajudar centenas de escravos a conseguirem sua liberdade. Além disso, foi a primeira mulher a liderar uma expedição armada na Guerra Civil.
            Harriet é uma personagem incrível, com uma história que ajudou a moldar os Estados Unidos, tanto por conta do ativismo negro durante e depois da Guerra quanto por conta do ativismo por direito das mulheres do fim da sua vida. Lemmons nem de longe consegue nos passar a grandeza dessa mulher, mas Erivo tenta nos emocionar e acreditar naquela história por mais miraculosa que pareça. Apesar da direção e roteiro serem fraquíssimos, Harriet e sua história merecem ser conhecidas por todo o mundo. É uma história que inspira e liberta.
            Seguindo a mesma linha, temos Tom Hanks voltando as premiações interpretando Fred Rogers, em A Beatiful Day In The Neighborhood, de Marielle Heller. Hanks, que já tem dois Oscar de Melhor Ator, desta vez foi indicado como Melhor Ator Coadjuvante, e esse é um dos principais erros do filme. Assim como Harriet, Rogers, ou Mr. Rogers como é conhecido, ficou na história norte-americana, mas de uma maneira bem diferente.
            Fred Rogers foi um apresentador infantil dos Estados Unidos, que manteve seu programa, Mister Roger’s Neighborhood, no ar de 1968 até 2001. Todos sabemos que o meio artístico é muito problemático e volta e meia surge algum escândalo envolvendo algum ator, diretor, apresentador ou alguém dessas áreas, e é muito difícil uma pessoa que esteve mais de trinta anos envolvido com esse meio não ter nada que o prejudique. Este é Mr. Rogers, o homem mais bondoso da América. Assim como o ator que o interpreta, Tom Hanks. Infelizmente, essa é a única coisa que os liga: o imaginário popular como bons homens. Mas o ator não está mal no papel, apenas foi escalado de forma errônea visto que nada se parece com o icônico apresentador, pois enquanto Rogers é esguio, Hanks está bem em forma.
            Como disse anteriormente, o filme peca em indicar Hanks como coadjuvante, o que ele realmente é neste filme. O longa de Heller tem Hanks na capa e tem como título a primeira estrofe da abertura do programa de Rogers, mas a história usa o personagem como escada para o personagem principal resolver seus problemas. Isso não seria um problema se a história que é contada não fosse algo que já vimos milhares de vezes: um homem tem problemas com o pai e no decorrer do filme ele consegue enxergar outras coisas além do seu ego. Dito isso, acrescento que a história de Rogers é melhor contada no documentário Won't You Be My Neighbor? (2018), de Morgan Neville. Apesar da qualidade questionável do longa, o personagem secundário é muito peculiar e merece ser conhecido.
            Falando em personagens reais, o brasileiro Fernando Meirelles dirigiu The Two Popes, que conta uma fictícia história de amizade e conversas entre os Papas Bento XVI e Francisco. O filme foi indicado em várias categorias: Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Roteiro Adaptado. Este já é um filme que muitas pessoas viram, pois o acesso a ele é mais fácil visto que sua distribuidora é a Netflix, porém por se tratar de um filme de cunho religioso, e ainda mais sobre conversas entre Papas, vejo que outras pessoas se recusaram a assistir por esses motivos. Confesso que filmes que tratam dessa temática também não me agradam muito, mas esta foi uma bela surpresa de como um roteiro bem escrito com boas atuações podem fazer um filme ser bom. As conversas entre os dois personagens são bem ágeis, fazendo com que a narrativa não fique entediante. O trabalho de Meirelles tenta desmistificar a persona santifica dos Papas, mostrando que são seres humanos com seus defeitos e personalidades bem distintas. Ainda que romantize um pouco algumas figuras, é bem interessante observar a fluidez do roteiro e interpretação de Jonathan Pryce como o Papa Francisco.
            Pryce está há décadas na indústria cinematográfica, mas nunca teve seu devido reconhecimento, assim como Antonio Banderas, indicado a Melhor Ator com o novo trabalho de Pedro Almodóvar, Dolor y Gloria, que também concorria em Melhor Filme Internacional. Almodóvar traz uma autoficção neste longa, pois narra momentos de sua vida com alguns toques criados para o filme. O cineasta espanhol está com 70 anos, e essa obra é fruto de toda a maturidade que adquiriu ao longo dos anos, tanto na vida pessoal quanto na profissional. É um filme pessoal, que buscar se reencontrar com o próprio diretor, rememorando a sua trajetória como artista, seus antigos amores, romances inacabados e seus problemas de saúde. É tocante ver como Banderas, amigo de longa data do diretor, consegue transpassar os diversos momentos da vida de Almodóvar, numa interpretação contida, que diverge muito do vencedor da noite por exemplo, Joaquin Phoenix em Joker. O  próprio Banderas defende a sua atuação mesmo sem intenção disto no filme, quando ele diz: “Um bom ator não prova que é um bom ator chorando, e sim contendo suas lágrimas”, e é merecedora a sua indicação, e espero que este filme seja um marco transicional nas carreiras de Almodóvar e Banderas.
            Outro velho conhecido da Academia é Martin Scorsese, que mesmo que quase sempre seja esnobado nas premiações, continua a fazer incríveis obras. Scorsese debutou como diretor em 1967, e até hoje só venceu um Oscar, o de Melhor Diretor em 2007 por The Departed, quando seus amigos Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e George Lucas lhes entregaram a estatueta. Com 77 anos, o diretor volta aos seus filmes sobre máfia, como Goodfellas (1990) e Casino (1997), mas com um olhar muito mais melancólico sobre a vida. Aqueles jovens mafiosos, agressivos e irritados, agora estão velhos, cansados e reflexivos. Quando se olha pra traz e percebe toda a trajetória dos quatro grandes personagens do filme (De Niro, Pacino, Pesci e Scorsese), se percebe que é um filme sobre despedidas. O diretor ainda traz um pouco daquela clássica agressividade mafiosa, porém os personagens estão em outra fase de suas vidas, assim como os atores e o cineasta. É algo mais ficcional, mas que conversa bastante com o trabalho de Almodóvar, Dolor y Gloria.
            Este é The Irishman, que concorreu a dez categorias e não levou um prêmio sequer. Também distribuído pela Netflix, muita gente passou por esse filme e se assustou com as três horas e meia de duração, mas esquecem que, por exemplo, Avengers: Endgame (2019) tem três horas e Titanic (1997) tem três horas e meia também. Infelizmente o filme se tornou uma piada por conta disso (tanto a duração quanto a premiação), mas com certeza marcou a carreira do diretor nessa nova fase de sua vida, que já havia se iniciado com The Silence (2017), um filme bem pessoal e também reflexivo.
            Mas um filme que não saiu zerado da noite foi o surpreendente Ford v Ferrari, de James Mangold, que acabou abocanhando dois prêmios técnicos: Melhor Montagem e Melhor Edição de Som, surpreendendo a grande parte do público que o ignorou achando que era apenas mais um filme de “carro/corrida”. Este também não é um dos meus temas preferidos no cinema, mas a história que Mangold nos conta é interessantíssima. Na década de 1960, grandes fabricantes de carros eram rivais, como a Ford e a Ferrari, mas uma era mais voltada para o grande público e outra era mais restrita às competições. Uma dessas competições é praticamente uma prova de resistência, a 24 Horas de Le Mans, na qual os participantes correm um circuito durante vinte e quatro horas. A Ferrari vencia esta competição há seis anos consecutivos, então a Ford resolveu quebrar essa hegemonia e contratar uma grande equipe que fosse capaz de desenvolver o melhor carro para isso, e também achar o melhor piloto.
            Mangold nos faz ficar vidrados durante as corridas, e até nos comover com os dramas do personagem principal, Ken Miles, interpretado por Christian Bale. É uma história que tem um pano de fundo automobilístico muito interessante, e mostra como essas grandes empresas lidam com seus trabalhadores. Ford v Ferrari é um trabalho que vai além de um simples filme de corrida, e coloca novamente o diretor aos olhos da Academia.

            Esses são filmes que muita gente irá ignorar após as premiações terem sido finalizadas, mas creio que cada uma delas tem algo de interessante para ser visto. Acho que esse Oscar nos apresentou a muitas boas histórias, divertidas e emocionantes e que mudaram de certa forma a história dos Estados Unidos, como em Harriet, A Beatiful Day In The Neighborhood e até Ford v Ferrari. Além disso, trouxe de volta renomados diretores com grandes trabalhos, como Clint Eastwood, Pedro Almodóvar e Martin Scorsese. Também quebrou um enorme tabu com Parasita, mas não nos enganemos com isso, pois os indicados foram em grande maioria homens e brancos.
            Foi um excelente ano para a sétima arte, e que esta década seja incrível também.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Limite

Direção: Mário Peixoto, 1931.
Quase noventa anos desde sua estreia, continua sendo o filme brasileiro mais importante em vários aspectos. Foi eleito em 1988 pela Cinemateca Brasileira como o melhor filme já feito no Brasil, e em 2016 ficou em primeiro lugar na lista dos 100 Melhores Filmes Brasileiros feita pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), superando Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho, Walter Salles e muita gente.

Mário é, antes de tudo, um escritor. Escrevia em seu diário os seus pensamentos mais particulares, e em outros papéis escrevia ideias que viraram livros. Filme mesmo, fez só um: Limite; mas deixou quase dez inacabados. Vindo de uma família rica, o garoto que vivia no Rio de Janeiro foi estudar na Inglaterra, e lá teve grande contato com o cinema: viu de Buster Keaton à Fritz Lang. Foi em outras terras, ainda, que viu num jornal a imagem base para seu primeiro e único filme: a imagem de uma mulher envolta nos braços algemados de um homem. Voltando ao Brasil com quase vinte anos, resolveu filmar o que conseguiu escrever sobre a imagem que martelou sua cabeça por tanto tempo na Europa.

Abastada, sua família possuía terras, e uma em particular é relevante para esta história: uma fazenda em Mangaratiba, litoral do Rio de Janeiro. Foi lá que durante meses, Mário, o diretor de fotografia Edgar Brasil, os atores e toda a produção do filme ficaram confinados até a finalização de Limite. 

      Mas vamos ao filme em si. Ele conta a história de três pessoas, duas mulheres e um homem, náufragos, que estão numa pequena embarcação no meio do mar. Perdidos, sem saber o que fazer, relembram suas histórias e compartilham conosco. É uma filme não linear: começamos no barco, vemos a história de um, voltamos pro barco, etc. É um filme brasileiro, mudo e em preto e branco.

      Nessas histórias que são contadas, Peixoto e Brasil fazem magia com a câmera. Enquanto Mário criava as cenas em sua cabeça, Edgar tentava elaborar maneiras de filmar tudo aquilo numa cidadezinha brasileira em 1930. São pequenas-grandes cenas de contemplação do tempo, da poesia que Limite consegue transmitir para quem assiste. O filme todo é recheado de cenas que podem incomodar bastante a maioria dos espectadores do longa (até por isso não foi um sucesso de público, tendo sido esquecido pelo tempo e quase perdido por completo as suas imagens), pois possuem uma duração maior do que estamos acostumados com o cinema atual. Com toda a correria da vida moderna, a velocidade e nossa cabeça sempre cheia de pensamentos, ver Limite pode causar muita estranheza com toda a calmaria do mar, o close nas pessoas e objetos e a história que parece não chegar em nada quando estamos acostumados com todas as reviravoltas e explosões atuais.

      As engenhosidades dessa dupla nos apresentam cenas incríveis, como a própria ideia do filme com a imagem da mulher. Durante a primeira história contada, há uma cena na qual uma mulher caminha pela rua, e a câmera, estática, vê a mulher se distanciando, e após ela sumir, começa a filmar, caminhando, a ponta das telhas de uma casa, como se estivesse com a cabeça para o alto, e em seguida, árvores. A dupla abusa do foco, principalmente em objetos redondos, como a roda de um trem, um botão, um cesto e bocas, assim como Hitchcock fez em vários de seus filmes, incluindo Psicose (1960). Mas o que eu acho mais bonito no filme todo, é a movimentação de câmera que rodeia os personagens. E a montagem, que faz o filme se movimentar e nos agraciar com a cena do filme do Chaplin, por exemplo. 



      Limite é um filme experimental. Dirigido por um jovem criativo com muitas ideias na cabeça, pulou fora da caixa de todas as comédias mudas norte-americanas e fugia até do expressionismo alemão - embora tenha referências. Cacá Diegues diz, no documentário Onde a Terra Acaba (2002), que "O filme do Mário me dava a exata dimensão de para onde teria ido o cinema se o som não tivesse acontecido. [...] Até hoje não consegui entender como é que um menino, no Brasil, acompanhado de Edgar Brasil, conseguiu fazer num país que não tinha tradição cinematográfica, um filme que fosse dar uma síntese de tudo o que tava acontecendo, e a direção de para onde o cinema iria. O cinema de Limite é um cinema que vai ficar perdido no tempo como uma possibilidade que o cinema não realizou."

      Por muito pouco Limite não foi perdido por completo. Na versão atual, recuperada nos 70, há uma parte faltante no início do filme, e podemos ver que a qualidade da imagem decai bastante por alguns minutos com aquelas manchas características. Felizmente conseguiram recuperar a maior parte desta obra, e hoje, Limite, não é só uma lenda. É uma referência do cinema nacional e mundial, de muita inovação e contemplação do tempo. No final, existem seis minutos de admiração do mar, agitado e calmo, como nossas vidas.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Pixote: A Lei Que Matou O Mais Fraco

Direção: Hector Babenco, 1980.
Fernando Ramos da Silva foi assassinado pela polícia em 1987, sete anos após estrelar Pixote, A Lei Do Mais Fraco (1980, Hector Babenco), quando tinha doze anos. Com dezenove, com uma mulher, uma filha pequena e um rosto marcado pelo crime, Fernando foi executado com oito tiros à queima roupa.

Babenco, argentino de nascimento mas brasileiro de coração, é reconhecido internacionalmente pelo Beijo da Mulher Aranha (1985), sendo indicado para quatro Oscars (inclusive melhor Filme e Direção). Em território nacional, Héctor é mais conhecido pelo longa Carandiru (2003), que retrata um pouco dos últimos dias de um dos mais emblemáticos presídios brasileiros. Carandiru herda bastante da bagagem de Pixote. Quando criança, Pixote foi apreendido e levado para um reformatório, e lá conviveu com muita gente que não encontrou outra oportunidade para sobreviver além do crime. Nesta sua nova moradia, o garoto fez amigos, brincou de assaltar bancos e usou drogas que entravam facilmente no estabelecimento. Pixote, assim como muitas crianças brasileiras da década de 80 e de hoje, conviveu com referências e exemplos ruins, e isso marcou a sua vida dali em diante.

Um dos amigos de Pixote era Lilica, um rapaz homossexual com quase 18 anos, que já possuía uma história nas ruas de São Paulo. Após certos acontecimentos, Pixote, Lilica e mais dois colegas conseguem escapar do reformatório e passam a viver nas ruas. Mas o que 4 menores de idade poderiam fazer para sobreviver? Roubar, claro, já que ninguém olha nem olhou para eles. A Lei do Mais Fraco consegue retratar bem a marginalização das zonas urbanas no Brasil, e toda a crueldade que reside nelas e nos reformatórios. Crianças pobres, abandonadas pela humanidade, vivendo num presídio-mirim, como se a turbulenta transição que nossos corpos sofrem entre a infância e a adolescência já não bastasse, o convívio com autoridades que só os colocam no chão piora tudo.

      Não poderia passar em branco a linda mensagem de Lilica, "O que poderia esperar uma bicha da vida?", quando desabafa para seus amigos sobre ser um maior de idade, homossexual e sem uma estrutura de vida fora das ruas. O filme ainda tem a ilustre presença de Marília Pera, no papel de uma prostituta-mãe para Pixote.


Direção: José Joffily, 1996.
Dezesseis anos após Pixote, A Lei do Mais Fraco, e quase dez anos após a morte de Fernando, o diretor José Joffily traz uma obra de ficção tentando contar um pouco da história do garoto, desde o início de sua fama com Pixote, até o seu trágico fim. O menino foi da sombra à luz, conquistando o patrimônio de uma casa para sua família com o que rendeu do filme de Babenco. Conseguiu alguns trabalhos pequenos no cinema e na TV após a fama, mas nunca engajou uma sequência grande de trabalhos, muito por conta da sua falta de dedicação e por ser semi-alfabeto, tendo dificuldade para decorar os textos.

"Por se tratar de um filme de ficção, foi feita uma dramtatização de alguns personagens e acontecimentos.", é dito ao público ao final do filme. O que é bem visível com o desenrolar da história. Fernando vive  num local pequeno e pobre de Diadema, com sua mãe e irmãos: dois rapazes que ganham a vida fazendo pequenos furtos, assim como Pixote foi retratado em 1980. Tendo dificuldade em arrumar outro trabalho como ator, Fernando resolve seguir seus irmãos para conseguir dinheiro e colocar mais comida na mesa de casa, mas seu sonho de ser ator jamais morrera.

Ser ator como Pixote foi estava cada vez mais distante. Quando Babenco viu o olhar do pequeno Fernando no início dos anos 80, logo escolheu o garoto dentre mais de três mil crianças para protagonizar seu filme. Aqueles pequenos olhos castanhos, transmitindo toda a ingenuidade e encantamento que Pixote deveria ter, ao alto de seus doze anos, sem pai e com uma história dura para seguir. Com quinze anos, Fernando já estava grande demais para os papéis que seu agente conseguia, e seu caminho para a Calçada da Fama ficava cada vez mais longe.

      Com a dramatização criada para o filme, entra Cida, sua mulher e mãe de sua filha Jaqueline, que tal qual Pixote (e Fernando), crescera sem o pai. Por vezes o filme ganha tons de romance adolescente, com o baile onde os pombinhos se apaixonam, a primeira transa, os encontros no parque e até os desentendimentos. Mas com Fernando em Cida, suas brigas eram pelo envolvimento do garoto com seus irmãos, culminando em sua prisão. A dramatização também está muito presente no roteiro, com muitas frases de efeito como: "Quem nasceu pra ser Pixote, nunca chega a James Dean". E Dean persegue a vida de Fernando com suas jaquetas de couro, sua Juventude Transviada e sua morte precoce.

      "A vida imita a arte". Essa foi uma frase muito repetida quando o jovem Fernando morreu. Após várias tentativas e fracassos no mundo da arte, o jovem voltou a crime com seus irmãos, mas por conta de sua filha que estava para nascer conseguiu um emprego longe da vida do crime. Mas Pixote já nasceu marcado. Garoto da periferia sem pai, semi-analfabeto e com passagem pela polícia, Fernando correu quando viu a polícia indo atrás dele. Sem camisa e desarmado, os policias atiraram oito vezes para ter a certeza que Pixote jamais voltaria ao mundo do crime.

      Fernando morreu. Outros Fernandos morrerão nas mãos de policiais. Pixote ficou, chocou e marcou. A marca de suas mãos sujas de sangue ficarão no imaginário brasileiro, como uma Calçada da Fama para os esquecidos no Brasil.

domingo, 26 de novembro de 2017

O Matador

Direção: Marcelo Galvão, 2017.
Primeiro filme brasileiro original da Netflix, é uma espécie de tentativa de refazer Cidade de Deus (2002, Fernando Meirelles) no sertão nordestino. Alguns e acertos e alguns erros, é claro, que fazem do filme ser uma boa porta aberta para a Netflix continuar com as produções aqui, por mais que a maioria do público não tenha gostado (pelo que eu vi).

O filme conta a história de uma história: um homem e duas crianças são parados por dois pistoleiros numa mata, e para entreter os bandidos o primeiro homem decide contar uma boa história que aconteceu há algum tempo naquelas redondezas. O rapaz conta uma história que aconteceu entre 1910 e 1940 mais ou menos, época do Cangaço, com as figuras dos conhecidos Lampião, Maria Bonita e Corisco correndo por fora do foco principal do filme: Corisco até chega a aparecer, para situar a época e a importância. Havia crescido naquela região um tal de Cabeleira (Diogo Morgado), que fora criado por Sete Orelhas (Deto Montenegro), um cangaceiro que em certo momento desaparece, e Cabeleira vai atrás de respostas.

Como é uma história dentro de uma história, há muita narração, assim como Buscapé (Alexandre Rodrigues) faz em Cidade de Deus. Além da narração e de nomes de personagens serem bem similares (ou iguais), O Matador busca destrinchar a história no meio, e observar outros personagens que tiveram importância no local, mas com 45 minutos a menos e com personagens não tão carismáticos como Bené (Phellipe Haagensen), ficou difícil circular no núcleo desses personagens enquanto outros ficavam abandonados. Por isso, há uma evidente quebra de ritmo da metade pro final, quando Cabeleira é deixado de lado por várias cenas.

       Mesmo sem Fátima Toledo para preparar o elenco d'O Matador, Diogo Morgado é uma grande surpresa como Cabeleira, um rapaz doído pelo seu passado, duro, sofrido, árduo, criado por um cangaceiro no sol quente do sertão. Com um andar pesado, característico, um olhar desconfiado mas confiante em si mesmo e uma voz arrastada, Cabeleira rapidamente fica conhecido e temido na região, e Morgado nos mostra o porquê com o seu trabalho. O grande vilão fica por conta do francês Monsieur Blanchard (Etienne Chicot), que mesmo sendo caricato, é ótimo para o papel.

       A obra tem como palco o nordeste brasileiro, e nada melhor como referência cinematográfica para isso do que Glauber Rocha. Com Barravento (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), e O Dragão da Maldade Conta o Santo Guerreiro (1968) no currículo, Rocha explorou bastante sua terra natal: não só as belezas naturais, a terra, o sol, as paisagens em si, mas também as pessoas que lá estavam, abandonadas pelo mundo. Enquanto Rocha ostentava uma fotografia P&B, Galvão tem as cores a seu favor, e sabendo muito bem disso ele abusa, de uma boa forma. A pobreza do povo, os rostos cansados e suados pela vida, e a imensidão que é o sertão são destacados com cores quentes e até alguns takes com a luz conta que dão quadros belíssimos. Além de Rocha, há muita influência de Sergio Leone (Il buono, Il brutto, Il cattivo, 1966), com todos os closes nas faces dos personagens.


       
       O Matador é rotulado também como um western brasileiro, o que é muito raro de se ver: temos três grandes nomes, dois já citados de Galuber Rocha, e O Cangaceiro (1953, Lima Barreto). Talvez o mais conhecido seja Faroeste Caboclo (2013, René Sampaio), que infelizmente não é tão bom. Galvão traz uma crueldade que não estávamos acostumados antes nessas terras: muito tiro, muito grito e muito sangue, além da fome e das injustiças que assolam a região.

       Netflix inicia com um ótimo filme no cenário nacional, mesmo tendo seus problemas de ritmo, consegue contar uma boa história e arrisca em muitas coisas, homenageando o antigo e abrindo novos caminhos para o cinema brasileiro. Apesar das comparações que faço serem exageradas às vezes, vale muito a pena apostar nesta obra.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

O Despertar da Besta (Ritual dos Sádicos)

Direção: José Mojica Marins, 1970.
O cinema no Brasil sempre foi muito complicado. Tanto o fazer cinema quanto a história do cinema nacional são emblemáticas, difíceis e com muitas reviravoltas: filmes que se perderam no tempo, produtoras falidas e cineastas esquecidos. José Mojica Marins é um deles. Lembrado apenas por alguns diretores e críticos, Mojica não recebeu o respeito merecida em sua época, e o público brasileiro não deu atenção necessária às suas obras polêmicas e controvérsias (muito por conta da nudez que o levou para os pornôs posteriormente)

Terceira obra de Marins presente na lista dos 100 melhores filmes brasileiros segundo a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), o Ritual dos Sádicos foi lançado comercialmente só nos anos 80. O longa permaneceu mais de dez anos sob o olhar dos censores da Ditadura, pois continha muita nudez e "tóxicos". Após seu lançamento comercial, adquiriu alguns prêmios no circuito nacional, e Mojica deixou sua marca (mais uma vez) no cinema brasileiro ao retratar em plena década de 70 o consumo das drogas e algumas práticas sexuais.

O Despertar da Besta conta a história de um psiquiatra que, visando estudar os efeitos do LSD na mente humana, injeta algumas doses da droga em quatro pacientes perturbados pela imagem de Zé do Caixão. A narrativa não é convencional: com o formato de um pseudo documentário, a primeira parte do filme conta alguns casos noticiados que envolviam o uso das drogas e a sexualidade aflorada, seja um romance, um orgia, um adultério ou um abuso. Enquanto os casos vão sendo contados por psiquiatras, Mojica (no papel dele mesmo) observa tudo sem entender a sua relação com os acontecidos, até o vermos num tribunal popular, onde sua obra cinematográfica está sendo julgada. Ainda como um pseudo documentário, em forma de ficção o diretor desabafa sobre a dificuldade de fazer filmes no Brasil, inovar num gênero inexistente no país e ainda ser esnobado pela crítica da época. 
       
      Após o julgamento, é iniciada a pesquisa com LSD nas pessoas, e Mojica brilha mais uma vez. Assim como em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), o filme todo é em preto e branco e quando a experiência acontece o horror vira cor. Vale destacar também que até esta parte o filme contou apenas os casos citados acima, com muita nudez, mas sem o terror clássico de Zé do Caixão. Agora, em cores, Zé aparece aterrorizando as quatro cobaias, representando o terror em suas mentes com (novamente) muita nudez, gritos, agressões e sustos. 

      Como falei, Mojica brilha. Segundo ele, "fazer um filme no Brasil era como construir um foguete e voar até a lua", e tal qual Glauber Rocha (Terra em Transe, 1967) e Anselmo Duarte (O Pagador de Promessas, 1962), citados no filme, Mojica vai até a lua com seu foguete ardendo com o fogo do inferno e agoniando de dor. A viagem no ácido é construída com muitos cortes, risadas e gritos perturbadores, utilização de cores quentes como vermelho, amarelo e laranja contrastando com verde e azul e Zé do Caixão levando cada mente para sua loucura singular, remetendo ao sexo, ao horror e aos abusos. Destaque para a escada humana em que Zé desce no início.





      Interessante pontuar também que ao mesmo tempo em que temos, no Brasil, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Rogério Sganzerla realizando O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Macunaíma (1969) e O Bandido da Luz Vermelha (1968), respectivamente, marcos do Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal, José Mojica Marins não fica para traz e segue experimentando o seu terror brasileiro em uma das suas melhores formas, criticando a sociedade ao mesmo tempo em que a aterroriza, com um anti-herói emblemático.


      Ao seu fim, o longa pincela sobre o uso das drogas usadas moderadamente, pois a mente humana já está doente demais, sendo um retrato de uma sociedade corruptiva (ou vice-versa). Mojica encerra sua obra com uma canção retratada no começo do mesmo: Guerra, de De Kalafe e A Turma. "Paz, paz, paz, eu sei não há mais, mas tento esquecer que vamos morrer, morrer muito cedo por causa do medo, por causa de loucos que eu sei não são poucos, que querem assim pra todos um fim, por meio da guerra fazendo varrer da face da terra tudo que existe, meu Deus vai ser triste”.



terça-feira, 31 de outubro de 2017

Ônibus 174

Direção: José Padilha e Felipe Lacerda, 2002)
O ano de 1993 foi marcado por dois grandes acontecimentos na história do Brasil: o primeiro, dia 14 de outubro, no Rio Grande do Sul, eu nascia; o segundo, dia 23 de julho, no Rio de Janeiro, oito jovens moradores de rua foram assassinados por policiais militares na calada da noite, em frente a Igreja da Candelária que deu nome à Chacina.

Sete anos mais tarde, dia 12 de junho de 2000, o mesmo Rio de Janeiro é foco da imprensa nacional durante o sequestro de um ônibus: um homem entrou no ônibus, fez alguns reféns e tomou o veículo para si durante quase cinco horas numa interminável tarde de segunda-feira. O Rodrigo de sete anos não fazia ideia do que acontecia, e anos mais tarde não se lembraria muita coisa além de um crime envolvendo um ônibus. E também não teria o conhecimento que a Chacina da Candelária estaria intrínseca no sequestro.

Ônibus 174 é resultado de uma investigação, contendo imagens de arquivo da imprensa que noticiou o caso, entrevistas com alguns envolvidos (como reféns, policiais e conhecidos do sequestrador) e documentos oficiais. Com duas horas de duração, o documentário interliga vários pontos, do começo da cobertura da imprensa até a emblemática resolução do crime, trazendo depoimentos cruciais para entender um pouco da importância e da marca que o sequestro deixou no país. Infelizmente, 17 anos depois, quase nada mudou.

José Padilha é um ótimo cineasta e o reconhecemos por trás de Tropa de Elite (2007 - 2010). A fama do primeiro Tropa se deve a muitas coisas, e uma delas é o personagem de Wagner Moura como Capitão Nascimento, que visa acabar com a criminalidade a qualquer custo, mesmo com meios cruéis e ilegais. Nascimento foi a voz de uma parcela da população que quis ter assassinado com suas próprias mãos Sandro Barbosa do Nascimento (que ironia).

      Quandro criança, Sandro presenciou o assassinato de sua mãe, e não conhecendo o seu pai, acabou fugindo do seu núcleo familiar (sua tia) e foi morar nas ruas. Uma criança recém chegada nas ruas, ou tenta sobreviver pedindo esmola e roubando, ou morre. Sandro persistiu nas ruas durante muito tempo, mas a sua adolescência foi muito mais conturbada do que se poderia imaginar. Longe de Hollywood com John Hughes suas comédias brancas sobre a dificuldade de ser entendido enquanto adolescente, com 15 anos Sandro presenciou a morte de oito amigos durante a noite de 23 de julho de 1993.

      Sobrevivente da Chacina da Candelária, o garoto frequentou grupos de capoeira enquanto continuava morando nas ruas, mas devido ao frequente uso de cola e outras drogas, adentrou para o crime realizando pequenos delitos para manter seu vício e sobreviver. A partir disso, foi detido e preso algumas vezes, sempre conseguindo fugir para as ruas, até o fatídico dia dos anos 2000. Com a visão da morte de sua mãe na cabeça, as sombras de seus colegas assassinados ao seu redor e a difícil sobrevivência nas ruas, Sandro se vê sequestrando um ônibus numa tarde de segunda feira, empunhando um revólver que apontava para os reféns frequentemente. Apenas para contar, resumidamente, a história do Sandro até o reconhecimento nacional, que é ilustrada no documentário com depoimentos de amigos de rua, familiares e conhecidos. 

   

      O rapaz ganha nome devido a gravidade de seu crime e a grande cobertura nacional do ocorrido, mas estava encurralado e não tinha nada a perder após o caso. Com 21 anos, Sandro é o reflexo de nossa sociedade, que após tanto sofrimento não viu mais saída alguma. No documentário, mais de uma vez é dito que a felicidade ali (para moradores de rua) não existe mais, e que é melhor estar morto do que estar preso junto com outras dezenas de homens. Sandro, negro e jovem, não tendo a quem recorrer para ajudá-lo (quem daria um emprego para alguém que não sabe ler, escrever, não tem casa e carteira de emprego?), foi preso e não aprendeu com isso. Ainda no documentário é dito diversas vezes que a prisão, no Brasil, só piora o bandido, que sai dela tendo mais raiva do mundo e não tendo aprendido nada de bom fora da vida do crime.

      Um ser invisível na sociedade, abandonado, teve um nome quando cometeu um crime: antes disso era ninguém. Com reféns na mira e toda a mídia nacional em cima de seu ônibus, Sandro era o astro do dia. Com o poder em suas mãos em forma de revólver, ditava as regras: os reféns deveriam parecer mais assustados do que estavam, pois não queria matar ninguém realmente. Mas lá fora, os policiais, a população e a mídia não sabiam disso. E tampouco os reféns poderiam ter certeza. A qualquer movimento em falso (da polícia ou dos reféns), outra chacina carioca poderia se concretizar. O dia 12 de junho de 2000 terminou com duas mortes em rede nacional. Parte dos brasileiros gostaria de ter arrancado um pedaço da carne de Sandro para guardar de recordação do dia em que o ódio e o preconceito falou alto demais. Esse dia perdura até hoje, sem transmissão ao vivo, mas com a mesma sensação de que tem muita coisa errada. 

      Ônibus 174 retrata sequestro um tanto quanto bagunçado, por parte de Sandro que não sabia muito bem o que queria, e por parte dos policiais que não sabiam muito bem como agir e não tinham equipamentos necessários para aquele tipo de operação, e que quase vinte anos depois, reflete bastante o pensamento de grande parte dos brasileiros. Ao mesmo tempo em que o documentário não julga os atos, ele nos dá a oportunidade de compreender muita coisa, o que é de suma importância para o desenrolar do caso e a emblemática simbologia dele.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Bingo: O Rei das Manhãs

Direção: Daniel Rezende, 2017.
Bingo é, provavelmente, o filme que melhor retrata um pouco dos anos 80 no Brasil.

Bingo também é, nada mais do que o palhaço Bozo, que por questão de direitos autorais tiveram que modificar o nome. O palhaço Bozo é uma criação norte-americana e que foi trazida pra cá no início dos anos 80, sendo um programa matinal que transmitia desenhos animados para as crianças. O que o filme nos traz é um recorte da história do Bozo no Brasil (que existiram vários), mais especificamente a história de Arlindo Barreto, um dos homens por trás da máscara.

É o filme de estreia na direção de Daniel Rezende, mas ele já fez excelentes trabalhos como montador: Cidade de Deus (2002); Narradores de Javé (2004); Tropa de Elite (1, 2007 e 2, 2010); The Three of Life (2011); e Robocop (2014). E em Bingo, ele fez questão de montar apenas o trailer, enquanto focava o longa todo em sua direção. Rezende traz uma direção bem pop para Bingo, algo que vimos com os já citados Cidade de Deus e Tropa de Elite, mas não visto em uma biografia ainda.

 A cultura pop brasileira dos anos 80 está nostalgicamente vibrante no filme. Até pra quem não viveu nessa década (meu caso) pode se encantar com as músicas, cores, figurinos e objetos da época. No meu caso, mesmo não vivendo a década, acabei incorporando um carinho imenso pelos anos 80, primeiramente na questão musical em casa (que havia uma coletânea da Som Livre com pop/rock nacional da década), e também por um trabalho realizado durante um ano letivo inteiro sobre os anos 80 (fui um dos responsáveis a falar sobre a música, além de dançar Michael Jackson, Menudo e o clássico Footloose).

Além de todo figurino brega oitentista e as cores neons que nos acostumamos hoje, a trilha sonora de Bingo é incrível. Incrível pois traz os anos 80 para o Brasil, e não com músicas gringas hispter. É o pop/rock nostálgico que toca nos bailes de reencontro, com Metrô, Dr. Silvana & Cia, Ritchie, Titãs e Roupa Nova. Música que, se fossem em inglês todo mundo adoraria e estaria no próximo Guardians of the Galaxy (2014 e 2017).

Talvez o ponto mais popular na cultura brasileira dos anos 80 seja a televisão. Enquanto o cinema nacional estava em queda, muito por conta da censura vinda da Ditadura e da violência aumentando nos grandes centros urbanos, o conteúdo vindo da televisão vinha crescendo. O cinema se sustentava com as pornochanchadas, que são filmes eróticos (não pornôs, como temos hoje), e a TV lucrava com as novelas de horário nobre. E Bingo acaba retratando esses dois lados do audiovisual brasileiro nessa década.

Arlindo Barreto, em Bingo virou Augusto Mendes (Vladimir Brichta), e foi um ator de filmes de pornochanchada, que o filme nos traz logo no início juntamente com a relação com seu filho. Após tentar alguns papéis em novelas, Augusto conseguiu passar nos testes e ser contratado para ser o Bingo num programa matinal. Porém, Augusto nem ninguém podia revelar a identidade do palhaço, sendo reconhecido somente com sua máscara (que seria o nariz, a menor máscara do mundo, segundo o finado Domingos Montagner).

A emissora líder de audiência pela manhã nos anos 80 era a Globo. Nosso querido Silvio Santos conseguiu importar o personagem Bozo para sua emissora, o SBT, e isso gerou uma enorme briga pela audiência nas manhãs da televisão brasileira. Bingo nos retrata um pouco disso: como Augusto reformulou o palhaço careta da gringa para o jeitinho brasileiro que estava com uma grande liberdade de expressão, algo que não se via em décadas. Augusto, tendo um filho da idade que assistia os programas matinais, sabia se portar diante da criançada, mas também era inovador e sonhador, que trouxe a interação com o público através do telefone e queria a todo custo passar a Globo no ibope matinal. Bozo, ou Bingo, trouxe também a já conhecida Gretchen (Emanuelle Araújo) para o programa infantil, dançando, seminua, para o Brasil inteiro de manhã.

Falando em crianças, já citei que Augusto tinha um filho, Gabriel (Cauã Martins), e Rezende explora bastante a relação de Augusto com ele. Pode ser bastante clichê (como a cena dois dos de carro da praia), e até forçada (como os diversos telefonemas em que o pai não atendeu), mas que foi importante para o personagem na vida real. Uma cena muito marcante do filme (e da vida de Barreto), foi uma ligação do filho para o programa, onde Gabriel diz que "você é o único pai que brinca com todas as crianças, menos comigo". Particularmente, eu gostei da relação, e principalmente da variedade de atuações do Vladimir Brichta, que consegue ir de um palhaço louco de cocaína para um pai atencioso e preocupado. Há também a relação de Augusto com a mãe, vivida em Bingo pela grandiosa Ana Lúcia Torre, que faz uma espécie de Norma Desmond (Sunset Blvd., 1950).



Com toda a fama e ibope que Bingo conseguiu, Augusto arrecadou muito dinheiro e acabou usufruindo de muitas drogas enquanto animava a criançada de manhã. É também um pouco clichê de uma biografia o protagonista sair do auge e cair num abismo de tristeza e desilusão. Mas ainda assim, mesclada com todo o contexto cultural paulista dos anos 80, o vício em cocaína de Augusto consegue retratar um pouco da loucura que foi esta década. 

Gostaria ainda de destacar algumas cenas em que Rezende e toda a equipe conseguem trazer um toque a mais na biografia do palhaço mais tenebroso que Pennywise. A primeira é no começo do filme, e já citei também, quando Augusto e Gabriel estão passeando pela praia e dão "zerinhos" com o carro (lembrando Os Cafajestes, 1962, de Ruy Guerra). Outra cena é o plano sequência de Bingo e toda a equipe de produção durante o programa: todo o jogo de câmera e coordenação dos personagens é algo que não vemos por trás das câmeras da TV. Mais para a metade do filme, com Bingo já nas drogas, temos um programa em que ele está alteradíssimo devido a cocaína, e coloca mais medo nas crianças que qualquer palhaço por aí. Rezende ainda nos trás uma simples, mas bonita tomada de Augusto, que após ter o conhecimento de sua demissão, vai embora da emissora coma as luzes se apagando enquanto passa: aqui, Bingo, de Augusto, adormece com as luzes. Quase finalizando o filme, Augusto surta em sua casa dando um belo soco em sua televisão, na qual refletia a imagem de Bingo em vez da de Augusto.

São cenas que, além do já mencionado Daniel Rezende, merecem o reconhecimento do grande de ator que é Vladimir Brichta. Passando por todos os fanfarrões e galanteadores (ainda assim, trazendo a essência) que já protagonizou, Vladimir vive Augusto em sua forma de pai e filho, e ele é a "porra do Bingo, caralho" (frase citada no filme lembrada num trailer/making off com Wagner Moura). Vladimir é a porra do Bingo, e o Augusto, e ainda dou graças a Netflix por ter segurado Wagner Moura mais um tempo, pois o personagem do Bingo foi escrito para ele. Brichta arrasa no papel, e é muito bom ser surpreendido por nomes que só vemos nas novelas.

O Rei das Manhãs traz um pouco da experiência do que foi os anos 80 no Brasil, e principalmente no que se refere a cultura pop, da música ou TV. E até para quem não viveu a década o filme funciona muito bem, pois representa um pouco do que foi a infância dos nossos pais. Ou até mais que isso, pois o programa louco do Bozo repercutiu em toda a nossa sociedade, e nos programas televisivos que encontramos nos anos 90. Hoje, realmente é impensável trazer um personagem nesse nível de volta para as crianças, até por isso que Patati e Patata deram certo, conseguindo conversar com as crianças sem preocupar os pais com piadas de baixo calão ou mulheres seminuas na tela.